Multifuncionalidade da horticultura urbana e sua integração ao ecossistema urbano

João Flávio B Gomes, Renata da Silva Brant Gomes, Alex O Souza

Resumo


Introdução

As projeções indicam que em 2050 a população urbana será de mais de seis bilhões de toda a população mundial (66,36%), contra 53,60% registrada no ano de 2014, de acordo com a United Nations (2015). O relatório The State of Food Insecurity in the World 2015 afirma que cerca de 795 milhões de pessoas em todo o mundo encontram-se em estado de insegurança alimentar (Food And Agriculture Organization, 2015). Nesse cenário, um dos grandes desafios é como e onde produzir mais alimentos e, ao mesmo tempo, garantir segurança alimentar e conservação dos recursos naturais? Para muitos países, a solução encontrada é a prática agrícola em áreas intraurbanas e periurbanas, a agricultura urbana. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (2015), a agricultura urbana é praticada por 800 milhões de pessoas em todo o mundo.

Compreendida como prática universal, pois está presente em todo o mundo (Boukharaeva et al. (2007) citados por Carvalho & Knauss, 2007) se constitui uma alternativa para o problema da crescente urbanização, por ser uma importante forma de suprir os sistemas de alimentação urbanos, relacionando-se com a segurança alimentar e o desenvolvimento da biodiversidade e por proporcionar melhor aproveitamento dos espaços, contribuindo, dessa forma, para o manejo adequado dos recursos de solo e da água (Mougeot (2000) citado por Machado & Machado, 2002). Além disso, possibilita incremento de renda e qualidade de vida para o agricultor urbano.

Em diversos países desenvolvidos, em desenvolvimento ou subdesenvolvidos do mundo têm ocorrido experiências exitosas que promovem a integração da prática da agricultura urbana ao ecossistema urbano, por meio do planejamento urbano e da gestão urbana, que possibilitaram benefícios mútuos, tanto para as cidades, como para os cidadãos. Entre os principais estudiosos desta prática, sem desconsiderar os demais, é consenso a multifuncionalidade dessa agricultura, provendo alimento de qualidade à população, preservando os recursos naturais e incrementando a renda dos grupos mais vulneráveis etc., além da sua integração ao ecossistema urbano, sendo praticada tanto em áreas intraurbanas como em áreas periurbanas (Mougeot, 2000a; Smit et al., 2001; Machado & Machado, 2002).

O entendimento e a compreensão da agricultura urbana e sua integração ao ecossistema urbano tem sido objeto de pesquisa de diversas áreas do conhecimento. Urbanistas, geógrafos, agrônomos, sociólogos, economistas, além de organizações governamentais e não-governamentais que estudam e buscam formas de viabilizar a multifuncionalidade da agricultura urbana, com suas vantagens nas dimensões econômicas, sociais e ambientais.

 

A agricultura urbana, periurbana e a cidade: muito além de conceitos

Desde o início dos primeiros núcleos urbanos, ainda no período neolítico (3.500-3.000 a.C.), as cidades e a prática agrícola sempre estiveram intrinsecamente conectadas. Ademais, a agricultura foi a principal atividade daqueles núcleos, os quais se desenvolveram e tomaram a forma de cidade, a partir do momento em que outras atividades, como a construção de moradias, locais de culto, levantamento de pequenas cercas, além de serviços diversos, passaram a ser realizadas por aqueles que não praticavam a agricultura. Era função dos produtores manter os demais realizadores de outras atividades com o excedente da produção agrícola (Benevolo, 2011). Desde a revolução agrícola neolítica, portanto, quando o homem evoluiu de ser coletor-predador para ser cultivador-domesticador (Mazoyer & Roudart, 2010), a prática agrícola já era urbana.

Contudo, segundo Mougeot (2000b), o termo “agricultura urbana”, ou ainda “agricultura intra e periurbana”, foi cunhado recentemente, tendo recebido destaque somente há duas décadas. No cenário internacional, esta terminologia teve seu uso difundido com o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Unhabitat), no início da década de 1980, visando discutir um novo modo de pensar as cidades (Gomes, 2016).

No ano 1996, o pesquisador Jac Smit, considerado o “pai da agricultura urbana”, foi o autor principal do livro Urban Agriculture: food, Jobs and sustainable cities, lançado no Fórum Mundial Urbano, em Istambul, pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP). O livro é considerado referência pela academia e organizações que estudam e trabalham com a agricultura urbana, sendo o primeiro trabalho publicado com rigor científico, tendo como base os estudos realizados a partir de visitas a vinte países entre 1992 e 1994, além de incursões a mais dez países após essa data. Em 2001, o autor, juntamente com os pesquisadores Annu Ratta e Joe Nasr lançaram a revisão atualizada do primeiro livro (Gomes, 2016), apresentando a evolução das discussões a respeito da agricultura urbana.

O conceito seminal de agricultura urbana proposto pelos autores reconhece as práticas agrícolas observadas na pesquisa como existentes no espaço da cidade ou da metrópole, a depender do tamanho da mesma, em áreas intraurbanas ou periurbanas. Além disso, a estrutura de cadeia produtiva da agricultura urbana já está presente nos países visitados, pois para os autores a agricultura urbana “é uma indústria que produz, processa e comercializa alimentos, e distribui para a população das cidades” (Smit et al., 1996).

Nos anos 2000, o pesquisador Luc J. A. Mougeot publicou o relatório Urban Agriculture: Definition, Presence, Potentials and Risks, and Policy Chalenges, documento que compõe a série Cities Feeding People, financiado pelo International Development Research Centre (IDRC) (Mougeot, 2000a).

No documento, Mougeot (2000a) assevera que o aparecimento na mídia do termo e de práticas ao redor do mundo aumentam a responsabilidade dos pesquisadores em busca de um consenso conceitual, principalmente no sentido de evitar o uso indevido do termo “agricultura urbana” e tornar possível que o mesmo seja perfeitamente entendido e transformador. Para o autor, “[...] o conceito deve ser suficientemente claro para que os usuários possam perceber facilmente seu potencial de complementaridade e de sinergia com outros conceitos correlacionados”. Dessa forma, o autor entende que o momento, agora, é o de conhecer não somente a agricultura urbana mas, também, como o mesmo se relaciona com outros conceitos, em especial, o de ecossistema urbano.

Mougeot propôs alguns parâmetros que pudessem caracterizar a agricultura urbana e assim distingui-la da agricultura rural: os tipos de atividade econômica, a localização intraurbana ou periurbana, tipos de áreas onde ela é praticada, sua escala e sistema de produção, as categorias e subcategorias de produtos (alimentícios e não alimentícios) e a destinação dos produtos. Os estudos de Mougeot contribuíram enormemente com a discussão e fomento da agricultura urbana em termos globais.

 




DOI: https://doi.org/10.1590/hb.v37i3.1775

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